José Garcia Neto e Hospital das Clínicas: histórias e memórias que se misturam
Egresso da UFG, atual superintendente do HC testemunhou diversos momentos da saúde pública e do Hospital, que acaba de inaugurar a nova sede
Texto: Ana Paula Vieira
Fotos: Acervo pessoal e Carlos Siqueira (Secom/UFG)
Somente na superintendência do Hospital das Clínicas da UFG, José Garcia Neto tem 14 anos de trabalho. Na última segunda-feira (14/12) ele inaugurou, juntamente com o reitor da UFG, Edward Madureira, um dos maiores hospitais de uma universidade federal do país. Mas a história do atual superintendente com a UFG e com o HC começa em 1978, quando ele inicia o curso de Medicina na Universidade.
Entre as décadas de 1970 e 1980, José Garcia testemunhou e participou do processo de transformação do HC de uma unidade de ensino ligada à Faculdade de Medicina a um órgão suplementar da Universidade, que passou a atuar na alta complexidade após mudanças históricas como a promulgação da Constituição de 1988, que instituiu o direito à Saúde, e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Além da Medicina e da saúde pública, a Universidade ainda foi a responsável por apresentar a José Garcia a filosofia e a sociologia, que o levaram ainda mais a desenvolver o gosto pela complexidade das coisas: “Quanto mais a gente conseguir complicar uma ideia, melhor”. Mas engana-se quem pensa que um projeto de 20 pavimentos, 600 leitos divididos entre enfermarias, UTIs adulto, pediátrica e neonatal é complexo o bastante para a disposição do médico em contribuir com a sociedade: “Eu não tinha dúvida de que quando terminasse, o hospital seria pequeno, pelo tamanho da medicina, da ciência”. Em entrevista à Sempre UFG, José Garcia Neto conta detalhes dessa trajetória e adianta que mesmo com tantas realizações, a palavra aposentadoria não está no seu dicionário.
Quando estudou na UFG, como era o HC?
Me formei em 1984. O HC era onde é hoje, mas na época tinha uma construção antiga, uma série de dificuldades e estava passando por uma transformação. Começamos no Hospital da Faculdade, porque na época que entrei era Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, depois se tornou órgão suplementar da Universidade. Quando eu estava na graduação, entre 1978 e 1984, ainda não tinha o SUS [Sistema Único de Saúde]. Estavam sendo desenvolvidas ideias e projetos em conferências nacionais de saúde. Então, naquela época, o HC atendia pacientes indigentes e quem não tinha seguro saúde. Os seguros eram bem centralizados, através de institutos relacionados ao trabalhador da indústria, do meio público, do comércio… Todos eles tinham convênio com a rede privada. Quem não tinha convênio nenhum e situação difícil economicamente, era chamado de indigente (não tinha nenhum tipo de trabalho). Nessa época, o Hospital começa a ter problemas sérios, porque era totalmente financiado pelo Ministério da Educação (MEC) e não tinha pagamento ou verba destinada ao tratamento. O dinheiro serviria para as atividades e o valor acabava por volta do mês de março, abril. Dali para frente vivia numa carência total… Era a falência desse sistema em que só o MEC mantinha o HC. O movimento sanitarista já vinha desde a década de 1970 e em 1980 se fortalece a ideia de criar um sistema único de saúde. Mas primeiro veio o Suds - Sistema Único Descentralizado de Saúde -, cada estado tinha seu Suds. O financiamento dele vinha do Ministério da Saúde, pois era atividade de saúde pública no Brasil, então o Hospital passa a ter duas fontes de renda: MEC e Suds, que começa a pagar para que você atenda os pacientes. Então o Hospital vinha com essa dificuldade de financiamento, mas veio a ideia de hospital público, que passa a atender com uma nova fonte de recursos. O direito à saúde está previsto na Constituição e todos têm direito ao SUS. Então em determinado momento começa a ter verba do SUS, a ditadura chega ao final, vem a redemocratização, a abertura e aí cria-se na universidade a figura do órgão suplementar e o HC deixa de ser da Faculdade de Medicina. O Hospital era muito tumultuado, marcado por greves, falta de material… Era difícil realizar medicina de alta complexidade. Para mim ficou muito marcado nesse momento, isso tudo aconteceu na minha graduação. Quando estou formando passa a ser órgão suplementar, Antigamente o diretor era nomeado pelo diretor da Faculdade de Medicina e subordinado a ela; depois passa a ser subordinado à Reitoria, assim como biblioteca, planetário etc. E aí começa a ter a capacidade de funcionar até o fim do ano, sem paradas. Em 1988, na oitava Conferência de Saúde, define-se a criação do SUS, pois o Suds foi muito bem elaborado, teve retorno social, então houve a conclusão de que o SUS seria bom. Então a gestão da saúde passa a ser tripartite: o Governo Federal fica na alta complexidade, o governo estadual na média complexidade e o governo municipal na saúde básica, sendo o comando central no Ministério da Saúde.
Naquela época, como o senhor interpretou essas mudanças?
Passamos a ser prestador do SUS, foi criada a tabela SUS e o financiamento do HC vinha do MEC e MS. Eu vivi esse momento conturbado mas bastante positivo, muito rico de ideias. Foi a transformação do Hospital, que entra na rede, deixa de ser apenas hospital de ensino e passa a ser ensino e assistência. Me formo exatamente nesse momento. Aí veio a eleição de Tancredo [Tancredo Neves], colei grau em 25 de janeiro de 1985. A eleição indireta, o multipartidarismo, tudo isso marcou muito e naquele momento eu tive um chamado de que eu tinha que entrar nesse canal para melhorar e tentar consertar uma série de falhas que foram sendo estabelecidas. Eu pensava em continuar trabalhando no HC e trabalhar em medicina pública. Eu tinha sensação de que a Medicina como venda, compra… Precisava ter um sistema menos agressivo que um sistema de mercado, comercial. Eu não tenho dinheiro, então se não tem dinheiro vai morrer? Isso tudo me marcou muito. A medicina pública e a saúde pública precisavam ser desenvolvidas.
E quais foram os reflexos desse contexto na sua vida e trajetória?
Minha área era alta complexidade. Era justamente a área hospitalar que me chamava. Gosto demais, até hoje, de trabalhar dentro de Hospital. Eu gosto de poder ajudar nesse momento em que todas as outras possibilidades de saúde falharam: a preventiva, a básica e nós somos a última opção de tratamento técnico-científico. Resta o hospital de alta complexidade, de pesquisa. Isso me encantava do ponto de vista de descobrir, pesquisar e ir formando gente. Depois da formatura eu me especializo em cirurgia geral e digestiva, depois cirurgia torácica e cardiovascular. Nunca fiz concurso para ser médico da universidade porque a intenção era ser professor-médico da universidade. Então fiz residência em São Paulo e depois de 12 anos eu volto e venho para a universidade prestar concurso para professor. De 1991 a 1994 fui professor substituto e aí apareceu vaga para professor definitivo da cadeira de cirurgia cardiotorácica. Depois também percebo as grandes dificuldades em questões administrativas e estudei administração hospitalar no Sírio Libanês, fiz cursos de MBA relacionados à administração de saúde pública e volto mais uma vez com mais bagagem para ter uma visão muito ampla do que seria a atenção a saúde. Cada vez me convenço mais de que a população está vivendo mais e necessitando cada vez mais de atendimentos hospitalares. As doenças começam a ser mais complexas e precisam cada vez mais de estudo na alta complexidade.
A Medicina evoluiu muito nesse período…
As modificações começam a acontecer de maneira muito rápida. Quando iniciei o curso não tinha a AIDS. Mas são momentos muito conturbados que modificam muita coisa. A medicina começa a crescer de uma maneira muito veloz. Agora o pessoal fica irritado, por exemplo, se muda uma regra na OMS [Organização Mundial de Saúde], mas é muito melhor mudar as ideias da OMS de uma semana para a outra do que ficar dez anos na ideia errada e depois mudar. Hoje a gente descobre que está errado rapidamente e conserta. A gente se corrige o tempo inteiro, as pesquisas estão sendo mais rápidas… Peguei um momento de aceleração mas que não nos assustava, momento acelerado agora já não assusta mais ninguém do ponto de vista médico. Hoje, estamos desenvolvendo uma vacina para o coronavírus em um ano e o pessoal está achando ruim. Naquela época, a sensação de mudança era quando estavam acontecendo grandes revoluções nas tecnologias, na política e nas ideias.
E além de momentos marcantes como a criação do SUS e as mudanças no HC, quais são suas principais lembranças da graduação?
Eu era um leitor voraz de literatura universal, gostava muito de ler. Também passei por muitas reformas na educação enquanto estudante e naquela época, no Ensino Médio e Fundamental não tinha filosofia e sociologia, então quando eu entro na UFG eu fui apresentado à filosofia e passei a ser um leitor voraz de filosofia e sociologia. Acho fundamental para o desenvolvimento social e passo a entender aquela literatura que eu lia mais como novela: Dostoievski, Victor Hugo, Machado de Assis… Eu lia de forma novelesca, não analisava muito aquilo no contexto mundial. Mas a leitura ensina o mundo nas entrelinhas. É muito importante para a saúde mental. Então a filosofia e a visão social de mundo, a Universidade me mostra de uma maneira muito estimulante e empolgante. Tudo isso me animava a viver em um mundo muito mais complexo. Quanto mais a gente conseguir complicar uma ideia, melhor. Quanto mais debate, melhor. A universidade me deu essa visão. Por isso eu quis ser professor.
E naquela época, em meio às descobertas filosóficas e as mudanças concretas na Medicina e no HC, o senhor imaginava inaugurar um novo HC deste tamanho?
Nunca. Não passava pela cabeça, de jeito nenhum. Pelo contrário, eu sempre imaginava que tava fechando o ciclo e não voltaria para o HC, mas por acaso eu voltava. Eu não queria ser médico de um hospital público, eu queria ser professor de uma universidade pública, queria ser médico-professor. Lutei para ficar tanto tempo aqui porque eu queria construir essa obra. Em 2006 [ano em que José Garcia assume a direção do HC], já tinha iniciado a obra. As pessoas achavam uma ideia maluca, mas eu queria assumir para levar para frente. Mas me chamavam de Clementino Fraga Filho [em alusão ao primeiro diretor e idealizador do Hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que passou por várias dificuldades na construção], diziam que tinha doido pra tudo, que ia parar no 4º andar. Depois subiu para o oitavo e parou. Tinha gente para desestimular aos montes. As pessoas viam nisso uma coisa tão grande que falavam que não ia dar. E eu não tinha dúvida de que quando terminasse, o hospital seria pequeno, pelo tamanho da medicina, da ciência. A sociedade vai se transformando. Hoje, em Goiânia, já cabem hospitais maiores… Mas o nosso tem uma característica muito importante: que é ser hospital de clínicas, que atende tudo. Somos um dos poucos que operam transexualismo no Brasil, sem preconceito. O hospital novo é muito bom, mas não é para deixar boquiaberto, exceto pela felicidade de ser atendido. Mas para nós, é daqui para mais… Como diz Clóvis de Barros, “passo para trás nem para pegar impulso”. Só para frente, na minha cabeça eu quero andar para frente. Não temos que pensar que chegamos no nosso máximo. A população merece isso. O mundo que o Brasil tem condições de construir é o hospital novo, a realidade que o povo quer é aquela, a gente não constrói porque não quer.
E para o futuro? O que ainda projeta para o HC e para a carreira?
No meu dicionário não existe a palavra aposentadoria. Eu gosto muito de desafios, estarei trabalhando até o último dia e espero que demore muito. Eu gosto muito do que faço. Gosto muito de respirar, de ver o coração batendo. Para mim, só tem graça se eu tiver alguma coisa pra fazer. A hora que você se convence de maneira inconsciente de que não tem nada para fazer, seu organismo começa a se autodestruir. O mundo vai precisar de mim até o último dia e eu preciso do mundo até o último dia. Espero que essa seja a história da metade da minha vida.
Fonte: Sempre UFG
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